quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Quem (de fato) ganha com a Lei 12.485?

Por Venício A. de Lima

"Mudanças na regulação das comunicações são necessárias, mas precisam ser realistas, sem contaminações ideológicas dirigistas. Um bom exemplo é o PL116, que regula o mercado de TV por assinatura. Após longa negociação entre todos os interessados, o projeto foi aprovado em instância final no Senado" (editorial, O Globo, 22/9/2011).
No dia 12 de Outubro, completou-se um mês que a presidenta Dilma Rousseff sancionou o PLC 116 (antigo PL 29) e o transformou na Lei  12.485 que "dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado". Trata-se de uma Lei complexa que, depois de longa tramitação no Congresso Nacional, iniciada ainda em 2007, havia sido aprovada no Senado Federal no dia 16 de Agosto.
Muito já foi dito e escrito sobre o tema. Especialistas comprometidos com a democratização das comunicações têm elogiado a Lei e até mesmo afirmado que aqueles que não a celebram "ainda não entenderam as mudanças que ocorrem no mundo e vivem no passado". Todavia, dúvidas importantes persistem, o debate continua necessário e algumas questões não podem ser ignoradas, inclusive a relação da Lei com o inadiável marco regulatório para as comunicações.
Para se compreender algumas questões polêmicas:
1.       Um dos objetivos da Lei 12.485 é unificar a legislação sobre a TV paga, independente da tecnologia utilizada. Até aqui existiam legislação e/ou regulamentos diferentes - e até mesmo conflitantes - para as diferentes modalidades, isto é, cabo ótico; satélite (Direct-to-Home ou DTH) e micro-ondas (Multipoint Microwave Distribution Services ou MMDS).
2.       A nova Lei libera completamente a participação do capital estrangeiro antes permitido para as operadoras por DTH e MMDS e apenas limitado no cabo (a 49%). A justificativa é estimular a competição e, segundo defensores da Lei, oferecer "novas opções de conteúdo audiovisual de qualidade e melhores serviços, por menores preços".
Esse é o primeiro ponto polêmico. Brechas na regulação anterior já possibilitavam a presença do capital estrangeiro em proporções maiores do que a nominalmente permitida na TV a cabo. Além disso, como se trata de um setor estratégico, não deveria haver algum tipo de proteção ao capital nacional? Haverá incentivo real à competição permitindo-se a entrada no mercado das teles que são oligopólios globais? Pode-se falar em competição quando ela ocorre entre uns poucos oligopólios? Os preços dos serviços atualmente oferecidos por estes oligopólios (telefonia fixa e móvel) não estão entre os mais elevados do planeta?
3.       Defensores da Lei destacam a distinção que ela estabelece entre os diferentes elos da "cadeia produtiva" da TV paga, vale dizer: produção, programação, empacotamento e distribuição. É a primeira vez que isso acontece no Brasil e, diz-se, o futuro aponta para a necessidade de se separar a regulação da distribuição daquela da produção de conteúdos audiovisuais. Alega-se, por exemplo, que na América do Norte, em alguns países da Europa e na nossa vizinha Argentina, a TV paga já supera a TV aberta. Esse é outro ponto polêmico.
A TV "consumida" por mais de 80% da população os últimos dados disponibilizados pela ANATEL indicam que, em Agosto de 2011, a TV paga chegava a 11,6 milhões de domicílios, ou seja, a 38,3 milhões de brasileiros ou cerca de 20% do total da população. A densidade (assinantes por 100 domicílios) média dos serviços de TV Paga é de 19,4, mas treze estados estão abaixo dela e há unidades da federação, como o Piauí, onde a densidade é de apenas 4,3. As demais, em cada 100 TVs pagas ligadas nos oito principais mercados brasileiros, mais de 60 sintonizam os canais de TV aberta na maior parte do tempo (Agosto de 2011). Não nos esqueçamos, todavia, que o mercado de TV paga não é nada desprezível. Em 2010, seu faturamento bruto atingiu R$ 1,011 bilhão. Isso representou cerca de 4% do total da verba destinada à publicidade no país (Projeto Inter-Meios).
Supondo que a TV paga, de fato, seja o destino pré-determinado para a maioria da população brasileira, consideradas as imensas diferenças de renda ainda existentes no país, em quanto tempo teríamos aqui uma situação semelhante, por exemplo, à Argentina (cerca de 50% da população)? Não conheço (e não encontrei) as projeções da indústria, mas suponho que ainda vá demorar se é que vai acontecer.
Se este raciocínio estiver correto, não faz sentido celebrar uma Lei por efeitos que ela ainda não pode ter no que se refere à TV "consumida" por mais de 80% da população (sem incluir aqueles muitos que a assistem na TV paga). De fato, a Lei 12.485 não se aplica à TV aberta (salvo, por óbvio, nas referências, diretas e/ou indiretas, que a ela se faz no texto legal).
Regra funciona como reserva de mercado pela Lei 12.485, as empresas radiodifusoras, produtoras e programadoras não podem atuar diretamente na distribuição de conteúdos da TV Paga, mas podem controlar até 50% do capital das prestadoras de serviços de telecomunicações. Já essas últimas, não podem prestar serviços de radiodifusão de sons e imagens, produção e programação, e sua participação em empresas com essas finalidades está limitada a 30%.
Alguns estão fazendo uma leitura dessa norma como se ela fosse um bem-vindo primeiro controle da "propriedade cruzada" na mídia brasileira. Na prática, todavia, ela significa, por exemplo, que a TV Globo (aberta) continuará produzindo e distribuindo conteúdo e também continuará sócia (em até 50%) da SKY (americana) e da NET (mexicana). Já a Telefônica da Espanha, por exemplo, não poderá produzir conteúdo e se quiser ser sócia de uma empresa de radiodifusão estará limitada a 30%.
Quem se beneficia com essa regra até o hipotético dia em que a TV paga ultrapassar a TV aberta no país? Na verdade, a regra funciona como reserva de mercado da produção e distribuição de conteúdo na TV aberta para as atuais empresas de radiodifusão.
As "disposições retrógradas" da Lei e mais. A lógica do capital levará, mais cedo ou mais tarde, às empresas de telefonia a pressionar pela sua entrada também na produção de conteúdo. Ou farão isso "de fora prá dentro", isto é, produzirão em estúdios em outros países e distribuirão aqui (o que a Lei não impede). Neste caso, voltaríamos à questão do item 1, acima: não seria o caso de se proteger a "indústria" audiovisual brasileira?
4.       A vigência dos artigos 16º ao 18º do Capítulo V que trata de proteção "Do Conteúdo Brasileiro" está limitada (1) pelo artigo 21º que contempla o relaxamento das normas, a critério da ANATEL, diante de "comprovada impossibilidade de cumprimento"; e (2) pelo artigo 41º que prevê o término da vigência doze anos a partir da promulgação da Lei. Vale dizer, a partir de Setembro de 2023, não mais valerão as exigências, por exemplo, de: três horas e meia de programação nacional por semana no horário nobre; em cada três canais dos "pacotes" comercializados, um terá que ser brasileiro; ou metade do conteúdo nacional terá de ser de produção audiovisual independente.
5.       A Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM) solicitou à presidenta Dilma o veto dos parágrafos 1º, 5º, 7º e 8º do artigo 32 da Lei. Por quê? Eles vedam "a veiculação remunerada de anúncios e outras práticas que configurem comercialização de seus intervalos, assim como a transmissãode publicidade comercial" e preveem que "em caso de inviabilidade técnica oueconômica", a critério da Anatel, as operadoras fiquem desobrigadas detransmitir os chamados "canais públicos de utilização gratuita", isto é, comunitários, legislativos, universitários, educativos, culturais, dentre outros. A presidenta Dilma não atendeu à solicitação da ABCCOM.
6.       Para alguns "liberais" que repudiam qualquer tipo de interferência do Estado, as "disposições retrógradas" da Lei – válidas apenas para os próximos 12 anos! – são: (1) o estabelecimento de cotas para produtores nacionais (inexpressivas 3h30 por semana quando se considera que no 1º substitutivo do projeto original previa-se exatamente o dobro deste tempo e/ou quando se compara aos 50% exigidos em países da Europa); e (2) o papel atribuído à ANCINE que expedirá os certificados de produção nacional ou independente para o que de fato merecer essa classificação.
Lições possíveis
Vale registrar que não só o senso comum, mas também teorias vigentes na Ciência Política nos ensinam que uma das melhores maneiras de se identificar os interesses em jogo em determinada decisão é verificar como se manifestam sobre ela os principais atores envolvidos.
A epígrafe deste artigo aparece em editorial do jornal O Globo que começa elogiando as privatizações do governo FHC; desqualifica os "governos populistas" da Venezuela, da Bolívia, do Equador e da Argentina pelas "experiências desastrosas" no campo das comunicações; condena as propostas da 1ª CONFECOM; e, por fim, elogia a aprovação do PLC 116, considerado "realista" e livre de "contaminações ideológicas dirigistas". Não estaria aí uma boa indicação de alguns interesses que estão sendo atendidos e de quem (de fato) ganha com a Lei 12.485?
Por fim, não podemos nos esquecer (1) que o critério fundamental para avaliação de qualquer legislação aplicável ao setor de comunicações deve ser sempre se ela possibilita o aumento da participação de mais e diferentes vozes no debate público; e (2) que a Lei 12.485 regula um setor importante, mas relativamente pequeno, do enorme campo que deverá ser abrangido por um marco regulatório voltado para a positivação do direito à comunicação no Brasil.
A ver.
***
[Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da
UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Regulação das Comunicações –
História, poder e direitos, Editora Paulus, 2011]

TELA VIVA NEWS


Primeira etapa da consulta sobre novo marco legal será na forma de perguntas e respostas
O Ministério das Comunicações deverá adotar um modelo de questionamento prévio à sociedade antes de soltar qualquer consulta pública sobre um novo marco legal para o setor de comunicação social. O modelo é o de abrir perguntas sobre diferentes temas e coletar as respostas antes de fechar o texto final de um anteprojeto. A expectativa é que essas questões sejam abertas em dezembro para ficarem em discussão por pelo menos 60 ou até 90 dias. Esse modelo de perguntas e respostas é adotado pela FCC e pela Ofcom nos processos de elaboração de novos marcos legais nos EUA e Reino Unido, respectivamente, e é conhecido como "Notice of Inquiry". Não seria a primeira vez que essa metodologia seria adotada no Brasil. O próprio Ministério das Comunicações chegou a adotar esse modelo em 2008, ao fazer uma série de questionamentos sobre a atualização do marco legal de telecomunicações.
Agora, a ideia é discutir temas como propriedade cruzada de meios, modelos de agências reguladoras, ajustes na legislação de telecomunicações (por exemplo, reversibilidade dos bens e serviço público, entre outros) antes que eles integrem um anteprojeto de lei.
O novo modelo ainda depende de uma consulta prévia à presidência da República e a alguns ministérios específicos.
Diálogo
Este novo modelo foi um dos pontos apresentados pelo MINICOM às entidades de defesa da democratização das comunicações no encontro que tiveram com o ministro Paulo Bernardo nesta terça, dia 18. As entidades, entre elas o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), FENAJ, CUT e Intervozes, estiveram reunidas com o ministro para apresentar uma lista de 20 pontos de uma "proposta para a comunicação democrática", como está sendo chamado o documento.
São várias propostas que consolidam alguns dos pontos defendidos no relatório final da Conferência Nacional de Comunicação realizada em 2009 e debates e seminários realizados ao longo deste ano. Segundo participantes da reunião, o ministro Paulo Bernardo teria, inclusive, brincado e dito que alguns dos pontos apresentados pelas entidades foram copiados do trabalho que está sendo feito pelo ministério.
A reunião acabou servindo também para desfazer algumas arestas criadas na relação entre o Minicom e a sociedade civil, sobretudo depois do movimento em defesa da banda larga como serviço público e do "tuitaço" promovido por algumas destas entidades.
A lista completa de posições ao ministério estão disponíveis no site do FNDC. Entre os pontos para a elaboração do marco regulatório defendidos por estas entidades estão:
1)    Arquitetura institucional democrática, com a criação de um conselho nacional de comunicação;
2)    Participação social, com uso de mecanismos abertos e transparentes de contribuição e participação da sociedade nos temas;
3)    Separação de infra-instrutora e conteúdo, com unificação das normas de comunicação social, independente da plataforma;
4)    Garantia de redes abertas e neutras;
5)    Universalização dos serviços essenciais, incluindo a banda larga, a telefonia e a radiodifusão;
6)    Adoção de padrões abertos e interoperáveis e apoio à tecnologia nacional;
7)    Regulamentação da complementaridade dos sistemas e fortalecimento do sistema público de comunicação, com igual proporção de canais comerciais, públicos e estatais;
8)    Fortalecimento das rádios e TVs comunitárias;
9)    Democracia, transparência e pluralidade nas outorgas;
10)  Limite à concentração nas comunicações;
11)  Proibição de outorgas para políticos;
12)  Garantia da produção e veiculação de conteúdo nacional e regional e estímulo à programação independente, com a regulamentação do Artigo 221 da Constituição;
13)  Promoção da diversidade étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de classes sociais e de crença, com garantias de espaço para a manifestação desta diversidade na comunicação social;
14)  Criação de mecanismos de responsabilização das mídias por violações de direitos humanos;
15)  Aprimoramento de mecanismos de proteção às crianças e aos adolescentes;
16)  Estabelecimento de normas e códigos que objetivem a diversidade de pontos de vista e o tratamento equilibrado do conteúdo jornalístico;
17)  Regulamentação da publicidade;
18)  Definição de critérios legais e de mecanismos de transparência para a publicidade oficial;
19)  Leitura e prática críticas para a mídia;
20)  Acessibilidade comunicacional.

Samuel Possebon.